Ádney (Nego)
O jornal televisivo acusava a segurança pública pela guerra no comando do tráfico de uma favela. A comunidade não podia se deslocar nas ruas. O comércio tinha fechado as portas e só abriria com autorização do chefe local. As crianças não podiam ir à escola. Ir trabalhar fora da favela se tornara um risco: podia-se ficar de uma hora para outra na linha do fogo cruzado. À noite, toque de recolher. Um helicóptero da polícia abatido. De dia, qualquer um se tornava um alvo fácil, para as quadrilhas que brigavam entre si ou para a polícia, que não tinha condições de discernir entre quem era morador e quem era bandido.
Toda essa confusão por causa de um único culpado: eu! Sim. Eu sou o culpado. Simples: eu sou o culpado porque sou eu quem compra a droga negociada por essas quadrilhas. Eles brigam por dinheiro. Vendem drogas, ganham dinheiro. Muito, mas muito dinheiro mesmo. São fuzis, bazucas, armas leves da mais alta tecnologia e de diferentes calibres. Munições que não se acaba mais. Tem que se rolar muito dinheiro para se comprar isso. Pois é, o comércio é lucrativo. A clientela é enorme e seleta. Eu, o viciado pobre, até roubo para comprar frequentemente; eu, o viciado rico das diversas classes, compro para bancar minhas raves e orgias; eu, o político influente, torro meu dinheiro e o do povo para saciar minhas vontades e de meus influentes convidados; eu, o jogador famoso, dou minhas cheiradas e tragos no pagode entre amigos. Eu compro, sou cliente vip e fiel. Banco a constante circulação da mercadoria. Portanto, se brigam por mais um ponto importante de venda é porque aquele é o ponto. Vai vender muito. Vai render muita grana. Por isso, está justificado o combate. Portanto, eu – o hipócrita – banco o tráfico e depois condeno a segurança pública.
Intervalo comercial. O próximo bloco traz outras pérolas. Mais desgraças, para variar. Desta vez a força da natureza agindo no perímetro urbano. As chuvas castigam a grande capital, o canal transborda e inunda residências. Carros são arrastados. O poder público mais uma vez é acusado de não tomar as providências cabíveis. Onde está a secretaria de obras? Os engenheiros locais não souberam dimensionar aquele velho canal? Para que servem tantas universidades cheias de professores e pesquisadores na área da hidrologia e hidráulica? Coitados. Para que irem tão longe e fundo no problema? Eis o culpado aqui. Perto de vocês. Eu. Eu de novo.
Aquele velho canal que corta a cidade deve receber águas pluviais. Águas de chuva, portanto. Águas, somente. As galerias de drenagem pluvial que conduzem os afluentes àquele velho canal são tubulações de grande diâmetro que foram dimensionadas e projetadas para conduzir água proveniente das chuvas que precipitam sobre o pavimento das ruas e – como não podem infiltrar e nem dá tempo de evaporar – escoam para as sarjetas, caem nas boca-de-lobos e ,por dentro das galerias, chegam até o velho canal. Eu, como não tenho nada a ver com essa parafernália toda, e como a tubulação é de grande diâmetro – portanto suporta tudo, como coração de mãe – ligo meu esgoto de casa na galeria. Eu, que não tenho muito tempo para grandes preocupações, jogo meu lixo na rua mesmo. Lixo que entra nas tubulações – né igual a coração de mãe? – e entope as galerias ou enchem de mais lixo o velho canal. Eu, que não tenho muita paciência e quero ver minha calçada sempre limpa, jogo aquele entulho de minha construção naquele terreno baldio. Se chover, as águas levam o lixo. E levam pro velho canal - esse coitado que agora conduz não mais somente águas pluviais. Esgoto, lixo, entulhos, pneus velhos. O que é pesado fica embaixo. Assim meu canal vai assoreando. Sua calha diminui. Por uma área, passa-se certa quantidade de líquido. Em se diminuindo essa área, logicamente que não passará a mesma quantidade de líquido. Esse líquido em excesso tem que ir para algum lugar. E vai. Transborda e vai para as ruas. Eu entupo as tubulações, contribuo para o assoreamento do velho canal, mas a culpa é dos engenheiros burros e do poder público que não toma as providências cabíveis.
Último bloco. Já num agüento tanta desgraça. Mas como tudo que está ruim pode piorar, vem a chamada: professora é espancada dentro da sala de aula por alunos. Com essa D. Maria Lucena – minha saudosa professora lá de Alagoinha, Paraíba – deve ter dado cambalhotas em seu túmulo. Bater numa professora dentro da sala de aula? Onde está a secretaria de educação? E da segurança? Desculpe-me, D. Maria Lucena. A culpa é minha.
Sim. Minha mesmo. Sou eu que quando meu filho tira notas baixas, pego o boletim e corro possesso para a escola tirar satisfação com a professora. Sou eu que culpo escola, diretor, coordenadora, psicóloga, os amigos. Meu filho não pode tirar essas notas. Uma esculhambação essa escola. Que método é esse que tão utilizando? Só porque sou separado e meu filho mora com a mãe e seu namorado? Que é que tem se ele usa brinco com dez anos de idade? Eu também não uso? Besteira. Pra que essa pressão no garoto? Sou eu que deixo meus filhos o dia todo na internet em casa, saio para trabalhar e deixo ele conhecer o mundo pela net. Vendo de tudo. Mas deixo a empregada com ele. Ela é boazinha sim. Não sei muito bem de onde ela é. Como é mesmo o nome dela? Nem converso com ela mesmo. Ele tem de tudo. Play Station 3. Última geração. Tem mais de 100 jogos. Tudo original, nada pirata. Foi uma fortuna. O computador dele é de ponta. Tem cam. Ele interage o dia todo com os amigos. Tem orkut, msn. Ele tem de tudo. Eita, já dormiu. Cheguei tarde de novo. Reuniões. Emprego bom para lhe proporcionar tudo de bom e melhor.
Não agüento. Desligo a televisão, com a certeza que sou eu quem está criando um ser sem amor que vai usar droga, bater na professora e não vai saber ser um cidadão. A culpa é minha. Mas é mais fácil culpar os outros. Pensando assim, consigo dormir mais tranqüilo.
Ádney (Nego)
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