terça-feira, 28 de abril de 2015

Aos 73 anos, aposentado conclui ensino médio e realiza sonho no RS

Foi aos 73 anos de idade que o aposentado Vitor Gonçalves realizou um sonho. Demorou, é verdade, e foi por muito pouco que não desistiu. Ele faz parte de um grupo, ainda pequeno, que, embora mais tarde que o normal, volta a frequentar a escola depois de anos e consegue concluir os estudos. No final do ano passado, o agora ex-aluno foi aplaudido por um auditório lotado no dia da formatura da turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola de Porto Alegre.
"Fui o último a ser chamado entre os colegas. Eu não sei, sabe, me segurei tanto, tanto. Todo mundo em peso levantou para me aplaudir. Parecia que o meu coração estava inchando. Nem olhei pra trás, senão era capaz de dar uma coisa em mim", conta ao G1, como se ainda estivesse na cerimônia realizada em dezembro de 2014.
A educação fez minha vida melhor. Em tudo".

Vitor Gonçalves, 73 anos

Os idosos do programa Educação de Jovens e Adultos (EJA) fazem parte de uma parcela da população brasileira que não teve oportunidade de frequentar a sala de aula na idade certa. Segundo dados do Censo Escolar 2013, são pouco mais de 3 milhões de pessoas dessa faixa etária matriculadas em escolas da rede pública estadual e municipal de ensino.
O analfabetismo, no entanto, não é uma realidade somente da terceira idade. O último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 8,3% da população brasileira não sabe ler ou escrever. O índice corresponde a mais de 13 milhões de brasileiros. Entre os adultos, a taxa é de 10,2%.

Na sala de aula aos 65 anos



Nascido na zona rural de Caçapava do Sul, cidade da Região Central do estado, viveu a infância, adolescência e início da juventude em uma casa simples no interior do município. Os pais eram analfabetos e a irmã e o irmão também não estudaram.
Aos 20 anos, recém-casado, mudou-se para a capital. Na cidade grande, teve acesso à escola, mas precisou interromper. A distância e a necessidade de ajudar no trabalho doméstico o impediram de continuar. "Era impossível estudar e trabalhar, porque eu morava muito longe. Não tinha ônibus perto. Aí, tarde da noite, eu tinha que ir embora a pé. Era arriscado, escuro. Agora não é mais, mas na época sim, e eu tive que parar", relata.
Para arcar com as despesas da casa ao lado da esposa, trabalhou como carpinteiro, zelador e "o que mais viesse". Com a aposentadoria, porém, sobrou mais tempo na rotina para aceitar o convite de uma educadora social que insistia para que ele voltasse para a sala de aula em 2006, aos 65 anos.
A escola é um lugar de orientação, para a escolarização e para a vida também".
Teonila Wollmann, assistente social
Ainda assim, não foi fácil mantê-lo lá. Em 2010 a perda da esposa Neidi Pereira Gonçalves, então com 68 anos, o paralisou. Os dois eram casados há mais de quatro décadas. “Quando eu estava subindo os degraus da vida, perdi minha companheira”, desabafa, com os olhos cheio d’água. “Até hoje eu sinto...”, tenta completar a frase, mas é interrompido pelas lágrimas.
O luto o fez pensar em desistir. Por dois meses deixou de frequentar a escola. "A diretora disse que eu poderia ficar fora quanto tempo eu quisesse. Quando eu voltei, fui aplaudido no pátio da escola”, comenta ele, que teve o apoio da instituição para voltar. “Estar dentro de casa, sozinho, sem aquela pessoa para conversar... não dá. Foi por isso que eu voltei”.
Mas logo em seguida, prestes a ser aprovado para o 8º ano, outro golpe o acometeu: com problemas cardíacos, ficou hospitalizado por 30 dias. “Com tudo aquilo, ainda me ataquei do coração. Depois, mais um mês para me recuperar”, recorda.  “Aí sim, quando eu fiquei bom de verdade, engatei e fui até o fim”.
Com frequência, o aposentado volta para rever os amigos (Foto: Rafaella Fraga/G1)
Com frequência, o aposentado volta para rever
os amigos (Foto: Rafaella Fraga/G1)
Uma nova família
No início, a procura pela escola está relacionada à realização de uma vontade antiga de aprender os conteúdos escolares. Saber ler, escrever, interpretar, calcular, entre outras competências, é uma condição frequentemente associada a ter uma vida melhor.
Viúvo e sem filhos, com um irmão já falecido e uma irmã com quem não tem contato, Seu Vitor fez dos funcionários, ex-professores e ex-colegas sua nova família. Com frequência, ele visita a escola e, entre um corredor e outro, estende a mão para cumprimentar a todos: o caixa da cantina, a moça da biblioteca, a faxineira.  “O que eu tenho de amizade... olha, vou te falar. Os amigos que tenho valem muito na minha vida”, orgulha-se.
Na sala de aula, ele e a colega Neli Tizoni, 66 anos, era os mais velhos da turma. Por isso, a dupla era parceira de trabalhos. “Sempre me respeitavam muito. Me entrosei com a gurizada, foi bacana mesmo”, afirma ele, que foi líder de turma. “Ele tinha um pequeno problema de visão, para enxergar o que a professora escrevia. Ele tinha mais dificuldade para copiar, era mais devagar. Aí eu ajudava ele”, conta ela, também viúva e mãe de duas filhas, já adultas.
Por conta do afastamento temporário de Seu Vitor, os dois não puderam se formar no mesmo ano. Mas a amizade continua. “Falo com ele seguido e sinto saudade, todos os dias, da escola”, emociona-se a ex-caminhoneira. Eu já tinha me formado na escola da vida. Mas eu tinha a vontade de saber sobre a escola de verdade. Sentia falta. Evoluí 100%”, afirma.
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As conquistas que os mais velhos atribuem aos estudos mostram que o papel da escola não é somente preparar e conduzir ao mercado de trabalho. Aprender traz benefícios muito maiores para todos. “A escola é um espaço de inclusão. Na faixa dos 60 anos, muitas vezes a pessoa é viúva, é aposentada, se sente só. A escolarização faz a diferença. A pessoa aprende a lidar com outras coisas da vida”, pondera a assistente social do Colégio Marista Vettorello, Teonila Wollmann. “Ele aprendeu a mexer no computador, já pode ir ao banco tirar o extratinho dele. A escola é um lugar de orientação, para a escolarização e para a vida também”, completa ela.
Hoje, Seu Vitor orgulha-se de nunca ter faltado a uma aula sequer.  “Fazia chuva, fazia sol. Notei que passava um tempinho e os colegas da turma começavam a desistir. Na metade do ano, sobravam pouquíssimos. Por três meses, fiquei só eu e a professora na sala de aula. É noitada e isso aqui ó”, diz, fazendo um gesto com as mãos simulando entornar um copo.
Com a etapa concluída com orgulho, o aposentado diz que até pensou em continuar, prestar vestibular e cursar Direito, para, quem sabe, realizar o sonho de ser delegado. “Mas eu ia ser muito duro. Muita coisa é encoberta, sabe? Não ia passar a mão por cima da cabeça. Fez coisa errada, vai pagar por isso”, conclui. Mas por ora, quer cuidar de sim e aproveitar a aposentadoria.

G1

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